quinta-feira, 5 de abril de 2007

A lógica da moderna filantropia

A escola das minhas filhas convida o 9º Leilão Anual, agora em benefício da reforma do playground, um dos mais bem equipados que já vi na minha vida. Os pais estão sendo solicitados a doar milhas aéreas, time-share dos hotéis, um fim de semana na cabana nas montanhas, ou emprestar o barco (mais as varas e minhocas) para pescar.
Podem também doar parte do seu tempo para dividir seu talento (consertar um computador, cozinhar um prato especial, desentupir uma pia, etc.). Mas o importante mesmo é que visitem restaurantes, lojas e supermercados pedindo dinheiro, cartões de presente ou outros serviços para apoiar o leilão. Objetivo: arrecadar mais de US$ 100 mil para a reforma.
Da mesma forma que os Estados Unidos são viciados em petróleo, como disse George Bush, no trabalho barato de imigrantes (como lembrou o editorial do The New York Times), ou em guerras (há forma mais rápida de estimular a economia?), o país possui uma equiparável determinação para resolver os problemas. Sejam quais forem. Pode ser o novo playground, estancar milhões de mortes por malária na África, perseguir (e prender) pedófilos ou diminuir a exclusão digital na Polinésia.
Ninguém espera um santo salvador ou mesmo um novo presidente. Junto a essa determinação, doutrinada implacavelmente desde que a pessoa nasce em solo americano, soma-se dinheiro. Muito dinheiro. Com quase 60% dos bilionários da Terra, muitos dos quais entre 30 e 40 anos, os EUA doaram em 2005 quase 2% de seu PIB, que é de US$ 13,7 trilhões.
Primeiro da lista? Errou. Não é o casal Bill e Melinda Gates, da Microsoft, e sim Gordon e Betty Moore, da Intel. Doaram US$ 7 bilhões no ano passado, seguidos pelo casal Gates (US$ 5,4 bilhões), o bilionário Waren Buffet (US$ 2,6 bilhões) e o polêmico George Soros (US$ 2,3 bilhões). Em termos institucionais, Bill e Melinda Gates Foundation estão em primeiríssimo lugar, com US$ 28,8 bilhões, seguidos pelo Wellcome Trust, da Grã-Bretanha, com US$ 18,8 bilhões e pela Ford Foundation (US$ 10,6 bilhões).
Quer se candidatar a pegar uma lasquinha desse dinheiro para sua instituição filantrópica? Difícil. A não ser quer você procure, antes, uma entidade americana que sirva de guarda-chuva para que a doação seja deduzida do imposto de renda deles, como a Brasil Foundation, da nossa Leona Forman, ou a Awish (aqui perto de Seattle), do formidável Michael Karp.
Mas essas doações bilionárias são apenas reflexo do grande negócio das doações, uma onda que, sob as boas graças do fisco, se espalhou não só nos Estados Unidos, mas também no Brasil. Descobriu-se, de repente, que o mundo estava ficando inviável. E que os governos, incluindo a ONU e milhares dos órgãos públicos, jamais resolveriam essas questões simplesmente porque são, por definição, governos. Ou seja, sem iniciativa, lerdos, perdulários, reclamões e cobradores de impostos.
Caridade (dar o peixe a quem tem fome) e filantropia (doar a vara, o anzol e ensinar a pescar) existem aqui desde que foi construída a Casa Branca, mas pode-se dizer que a era do “doar com eficiência” foi inaugurada em 1980, por iniciativa de Bill Drayton, antigo consultor da Mckinsey, que resolveu levar os padrões de efetividade da iniciativa privada ao Terceiro Setor, fundando a Ashoka.
Drayton descobriu que o Brasil já era um líder em responsabilidade social, seja por meio de trabalhos como o de Vera Cordeiro à frente da Associação Saúde Criança Renascer, ou mesmo de atividades pioneiras, já que na década de 1970, como a Fundamar, do advogado Túlio Vieira da Costa, em Minas Gerais. Muitas dessas iniciativas estão descritas no livro “Como Mudar o Mundo”, do jornalista David Bornstein, recém-lançado nos Estados Unidos e no Brasil.
O problema aqui , tal como aí, é que muitos bilhões de dólares em filantropia (ou em caridade) estão sendo jogados fora por má administração. Por isso é que está surgindo a onda de novos filantropistas, que não apenas doam dólares, mas também mobilizam recurso privados, tempo, capital social e expertise para mudar o planeta. No fundo, no fundo, todos seguem a regra franciscana: é dando que se recebe.

Além da morte e dos impostos

Além da morte e dos impostos, outra certeza que os americanos têm é a importância do respeito pela vida em sociedade, cujo palco cotidiano é o trânsito. Aqui, como atestam alguns manuais, o motorista nada mais é do que um ser humano vestido, temporariamente, de algumas latas que andam sobre rodas.
A placa de “pare” por exemplo, existe para o carro parar, e não para diminuir a marcha e olhar para o lado à procura de um carro inimigo que vai nos obrigar a, realmente, parar. Outro polêmico sinal, o amarelo, inventado em 1912 pelos próprios americanos e que até hoje não entendemos direito no Brasil, foi instituído para o condutor diminuir a velocidade e... parar. Não é para dar uma buzinadinha e acelerar, rezando para ninguém (incluindo o guarda) te ver.
Mas o território mais civilizado que existe é a faixa de pedestres, aquelas grossas linhas brancas feitas para quem deseja atravessar as ruas. Nos Estados Unidos, nós, bípedes, ali reinamos, como se tivéssemos um escudo invisível a nos proteger de outros bípedes vestido de imensas armaduras. Se você a atravessa, o carro espera. Você tem o direito de passagem, como se diz por aqui.
Foi por não me lembrar de que pedestre é ser humano, com mais direitos do que deveres, é que tomei bomba no exame de motorista logo que cheguei aos Estados Unidos. Nervoso, apreensivo, aflito, embora dirigisse desde que comecei a andar, fui derrotado fatalmente por uma pergunta boba, fundamental, mas rasteira e fulminante:
• Questão 9 – Se você está dirigindo, o sinal está aberto para você e um pedestre inicia a travessia pela faixa de pedestres, de quem é a preferência? Teclei a resposta no computador: EU. Afinal, o sinal abriu para mim e o pedestre tem de esperar pacientemente pela sua vez, certo? Errado.
O computador começou a apitar, ao mesmo tempo em que uma modorrenta instrutora se virou para mim com olhar de decepção, talvez me perdoando pelo fato de ser brasileiro, morar numa árvore no meio da floresta amazônica, comer com as mãos, “como é injusto esse mundo”, ainda desconhecer os princípios básicos de civilidade.
Fiquei duas semanas me lamentando, precisei pagar mais de US$20,00 e, por insistência da família, voltei de cabeça erguida para fazer o exame. Desta vez, embora tenha errado umas cinco questões e não ter conseguido fazer a baliza corretamente, saí vitorioso com a minha driver’s license – uma carteirinha branca, com foto, tipo sangüíneo e declaração de doação de órgãos, o que está para os americanos como, na biologia, o gene está para o DNA.
Quando os fatos mudam, dizia John Maynard Keynes, sua cabeça também precisa mudar. Nos Estados Unidos, considero-me o último bastião do respeito às leis de trânsito. Ser parado numa rodovia e abordado por um guarda, como se vê nos filmes, seria a suprema humilhação. Ser multado, então, e por qualquer razão, seria o fim.
Paro no sinal vermelho, espero pacientemente pelos pedestres atravessarem a rua (em qualquer situação), não saio cantando pneus ou tento dividir os espaços que não existem com outros carros.
Incrível, todo mundo aqui é assim. As pessoas não saem de casa para travar guerras no trânsito, descontar desejos reprimidos da infância nos outros motoristas, assustar com buzinas quem não reparou que você é uma pessoa ocupada, cheia de preocupações, repleta de tarefas, que não tem mesmo tempo a perder. Como naquele filme “Um dia de fúria”, com o excelente Michael Douglas.
Ainda não cheguei ao ponto de criar um ONG na área de trânsito, ou de ser um voluntário do Detran aqui. No entanto, hoje entendo que defender os pedestres é defender a si mesmo. Pode parecer uma preocupação exagerada de quem ainda tem tantos sinais verdes e vermelhos pela vida, mas o trânsito das cidades é a representação da nossa esquecida civilidade.
Dar passagem, seja a um pedestre ou a um outro carro apressadinho, faz bem. E é coisa que não custa nada. Contribui para a felicidade do mundo. Melhora o clima da sociedade. Deixa a gente mais feliz.