sexta-feira, 5 de junho de 2015

NA PRESENÇA INSIDIOSA DA FINITUDE- Entrevista com Gilberto para à Mesa com o Valor Econômico





Pedro Augusto Leite Costa, de Seattle.

Basta desembarcar nos Estados Unidos que as luzes e sirenes da imigração se ativam. Gilberto Passos Gil Moreira, um negro senhor de 72 anos, resigna-se e é acompanhado pelos agentes até a salinha do Homeland Security, onde é revistado, interrogado e, finalmente, humilhado pelas autoridades da imigração até ser liberado. 

Fica ali por 30 minutos até descobrirem, nos arquivos computadorizados, que sua prisão por portar uma bituca de maconha aconteceu no longínquo 1976, em Florianópolis, Brasil, quando a ditadura tomou-o como exemplo do combate às drogas. Como concede o guarda da f


ronteira, “os Estados Unidos vão liberar a sua entrada desta vez”. 

Ninguém ali sabe que Gil, o homem que agora está à minha frente no Ray's BoatHouse, o mais famoso restaurante em Seattle, uma estrutura de madeira que bóia na confluência entre o canal que une a água doce do Lake Washington ao oceano Pacífico, é o cantor, compositor, multi instrumentalista, escritor, ambientalista e, nos dias de hoje, uma das poucas unanimidades existentes no Brasil - e em diversos lugares do mundo.

A bela mulher que nos acompanha, sua esposa Flora Giordano Gil, dona de passaporte europeu por ser neta de italianos, debate-se, reclama do tratamento dos Estados Unidos, sugere que se lance uma campanha para eliminar o nome Gilberto Gil das chamadas pessoas perigosas que entram no país. Gil olha para a mulher como Da Vinci olharia para Monalisa. Cala-se, espera a tempestade passar e, se ninguém o solicitar, recolhe-se à contemplação da vida.

Com mais de 640 músicas, 57 álbuns e 8 Grammys, Gilberto Gil, como em uma das suas últimas canções, não tem medo da morte, mas tem medo de morrer. “Estou diante da presença insidiosa da finitude”, conforma-se. “Estou numa idade onde sei que não haverá tempo suficiente para fazer tudo, onde a humildade bate mais forte, onde as coisas vão se acomodando”. 

Gil não se vangloria da sua genialidade musical, ou de ter enriquecido a vida de milhões de pessoas com a sua música. Bebe um gole de cerveja Indian Pale Ale, cujo um simples copo é capaz de deixar muita gente inconveniente, para confessar:  “Pouca gente sabe que tudo que fiz foi para mim mesmo, para entender minhas próprias questões e para me deixar feliz”. “Eu sou meu primeiro público”, confessa. “Se muita gente gostou, é lucro”.

A conversa é tão urgente que o garçon começa a fazer cara feia esperando o pedido. Sugere-se uma dúzia de ostras frescas e um prato de mexilhões (“vir a Seattle e não comer peixe é como ir a Roma e não ver o Papa”, comenta-se). Gil, pessoa de fala mansa, espírito generoso e gestos nobres, mesmo consumindo meio copo da cerveja artesanal, não fala sobre os outros e quase nada sobre si mesmo, mas filosofa incessantemente. 

Magérrimo, bem vestido, cheirando colônia que ninguém conhece, escolhe um linguado, aqui chamado de Halibut, outro prato típico da cidade. Flora, um King salmão. Gilda Matoso, assessora de imprensa e ex-senhora Vinícius de Moraes, uma sopa de moluscos. O fotógrafo Lorenzo Madrid sugere um Sauvignon Blanc.

A conversa corre solta até quando adiciono pimenta perguntando o que está acontecendo no Brasil. Gil inflama-se, eleva o tom e proclama: “Neste mundo onde a soberania dos países é relativa, o Brasil vai ter que se adaptar à racionalidade global sem perder suas peculiaridades, a alegria, a celebração da vida, a cordialidade, a espiritualidade - o mundo precisa disto e nós precisamos do mundo - o mundo todo, todo o mundo”, diz. 

Gil recorre à geografia para exercer o patriotismo. “O mundo precisa de recolhimento mineiro, da exuberância baiana, da racionalidade paulista e do encanto do Rio, uma porta aberta para a festa”, diz. “A lógica da eficiência, do trabalho e da racionalidade do regime capitalista tem seu limite, precisa se reinventar (...) se as pessoas não olharem para o lado espiritual teremos para sempre pilotos alemães deprimidos levando aviões a bater contra as montanhas”. 

“Quando foi o Brasil, o presidente norte-americano Roosevelt voltou tão impressionado que tentou implantar aqui nos Estados Unidos este melting pot doido brasileiro, o amálgama de todas as raças e culturas - e eles estão tentando até hoje, sem conseguir”.  

Gil, como na Refazenda, não fala, despeja poesia, constrói frases hiperbolicamente,  brinca com palavras e pensamentos,  como num carrossel que deixa todos à mesa em respeitoso silêncio. Gesticula bastante, olha para cima e para os lados à procura da melhor expressão e, quando não consegue se lembrar de alguma coisa, vira-se para Gilda, uma enciclopédia musical ambulante que lembra das datas de shows, encontros e praticamente tudo que aconteceu na vida de Gil.

Alguém lembra da piada que o Brasil está à beira de um abismo, e que agora finalmente está dando um passo a frente. Gil, sério, diz que “o país  precisa sair desta morte diária do excesso de aflouxamento de tudo, necessita ter a dose diária de apertamento, voltar ao seu eixo, colocar a corrupção - que sempre houve - em níveis aceitáveis, níveis japoneses”, brinca, “mas resolver antigos problemas abre as portas para resolver novos problemas, o fim de um é o começo do outro”, filosofa.

Gil está nas estradas do Canadá e dos Estados Unidos, percorrendo diversas cidades de avião e ou num ônibus adaptado. A turnê “Gilbertos Samba“, onde apresenta-se no palco à la João Gilberto e ao lado de seu filho, Ben, deixa as casas lotadas, reúne as comunidades brasileiras e, naturalmente, provoca a discussão sobre o Brasil. Já veio aqui dezenas de vezes desde a década de 70, quando estava exilado em Londres. Invariavelmente é barrado na fronteira, mesmo possuindo um apartamento em Nova Iorque.

Flora, que gerencia da vida pessoal e profissional de Gil,  interrompe e sugere que “Pê”, como ela chama o homem com quem está casada há 27 anos,  belisque outros pratos, evite qualquer comida à base de lactose e que fale sobre a situação dos direitos autorais no Brasil, especialmente o streaming do Google, que embora seja a melhor ferramenta de divulgação dos artistas não paga pelos direitos autorais. Gil, que ainda precisa trabalhar para viver,  cala-se,  admira sua Monalisa,  delicia-se com a cerveja e o Halibut até que pergunto sobre Dilma Rousseff.

“Há uma cobrança exagerada da opinião pública em cima dos indivíduos, uma esperança de que um salvador da pátria, com poderes imperiais, virá para nos salvar. É como se sempre tivéssemos adiando o encontro com nós mesmos, o encontro com a dificuldade. Veja o exemplo da Presidente: o que Dilma pode fazer? “ “O problema não está no governo ou nas instituições, está em nós”, diz o ex-ministro da Cultura.

Mas precisamos de mudanças, argumento. “Este é o problema da racionalidade, do pragmatismo positivista - a idéia de que tudo tem de ter uma solução. Toda solução é um problema, se resolve um antigo problema e se cria outro”, ri copiosamente o autor de Retiros Espirituais ("Resolver tê-los é ter, resolver ignorá-los, é ter")  “Não temos de ficar obcecados por soluções. Não se vai resolver tudo em uma geração, são as duas coisas ao mesmo tempo, precisamos entender a simultaneidade. Temos dificuldade para entendermos isto, o certo e o errado, aceitar o que Osvald de Andrade já disse no Manifesto da Poesia Pau Brasil sobre "a contribuição milionária de todos os erros”. 

Gil discorda que, no Brasil, “tudo está demorando em ser tão ruim”, como versou uma vez seu amigo Caetano Veloso. ΅É preciso ter paciência, diz. “Precisamos nos perguntar como se vai construir um consenso entre vários interesses políticos, como se supera este parlamentarismo branco, como não ficarmos submetidos aos interesses dos indivíduos - o que temos é um sistema que não funciona, é um sistema já caduco”.  

Gil fala de política sem citar nomes, e sempre por platitudes. Compara o "presidencialismo de coalização”, onde não se tem a necessária flexibilidade para mudar o comando sem traumatismos, como a mãe dos nossos problemas. "O PT é um partido que sucedeu vários outros que passaram pelo menos problema, não importa o personagem lá em cima. No parlamentarismo, a crise vai para dentro do governo e se resolve ali mesmo, não fica esta questão do impeachment de um poder imperial, não fica este problema moral”, diz.  

Na mirabolante fala, muito semelhante ao contorcionismo de sua obra, há sempre a lembrança sobre o caminho de Buda, o caminho do meio. “Não há o certo e o errado, tudo corre ao mesmo tempo, tudo tem dois lados, toda solução é o começo de outro problema, assim é a vida”, repete. Cita o filósofo francês François Jullien,  “que criou uma expressão de que eu gosto muito: O justo meio está na igual possibilidade dos extremos”.

Gil vê sua passagem pela política - vereador, ministro da Cultura, ativista ambiental - como resultado “da ilusão de contribuir”. Quando pergunto se voltaria à política, tergiversa, abaixa o queixo, como se procurasse as palavras no chão, até que entrega à decisão ao destino, ao “se for chamado”, deixando a porta aberta para interpretações. Gil, que já foi embaixador da macrobiótica no Brasil e agora parece ter chegado à fase Zen, não incorre em extremismos, sempre está do lado equidistante dos opostos. 

O ex-ministro, no entanto, reforça a necessidade do Estado financiar a cultura. Em países avançados, como nos Estados Unidos, onde a iniciativa privada assumiu responsabilidade acima de seus interesses, através de mecenas como Guggeinhein, Ford e outros incentivando a arte, tudo bem. No caso da Europa e no Brasil, diz, o Estado tem um papel, pois entregamos a ele mais responsabilidades. Quando eu era ministro, financiamos a cultura para regimes desprotegidos, para setores cuja manifestação não interessa ainda ao sistema privado, a única solução é o Estado financiar” 

O efeito da cerveja IPS começa a ser sentido. Gil fala sobre os festivais da canção, dele cantando Bom Dia (“Acorda, meu amor, é hora de trabalhar”, em companhia da co-autora e então mulher Nana Caymmi, da violência do crime passional de ¨Domingo no Parque”, onde “o espinho da rosa feriu Zé, e o sorvete gelou seu coração”, ou de A Paz, em companhia de João Donato, que chegou em sua casa um dia com a fita com a melodia, dormiu e, ao acordar, uma das mais lindas letras de todos os tempos - feita por Gil - estava pronta. “A paz invadiu o meu coração/como se o vento de um tufão/arrancasse os meus pés do chão/onde eu já não me enterro mais”. 

Gilberto Gil não sabe explicar de onde sai tanta criatividade. Para ele, as coisas acontecem expontaneamente, sem muita razão ou método. Quando a canção não vem, fica no violão horas e horas até que ela aparece - dá muito trabalho às vezes, muita transpiração quando a inspiração não chega. Com a idade, diz ele, a ânsia da criatividade arrefeceu, a produção diminuiu, mas, ao contrário de muitos de seus contemporâneos, continua distribuindo boas surpresas até hoje.

Gilberto Gil já morou em Los Angeles um ano, onde deixou amigos como o produtor musical e seu fã, Quincy Jones. Em companhia da mulher, assiste House of Cards e Escândalo, e se refere a gente como os bilionários Warren Buffett, Bill Gates e Jorge Paulo Leman, com quem conversa e divide o palco global. Quando cantou durante a seção da Nações Unidas, pediu o Kofi Annan (ex-secretário geral da ONU), que é de Gana, para tocar o tambor na última música. Foram aplaudidos de pé. 

Hoje está mais triste com as constantes humilhações na fronteira, embora não deixe de elogiar a exuberância do país. Olha para a janela, escuta que os salmões, todos os anos, vêm do Pacífico para voltar aos rios, desovar e morrer, passando por debaixo

(tirei) "O mundo reconhece a qualidade trágica brasileira, a gente quer se livrar da tragédia, temos de absorvê-la dentro da questão trágica, com contradições permanentes a superar, e tudo isto não é fácil. Nada cai do céu, tudo é difícil".

Flora pede que Gil fale sobre direito autoral, sobre o não pagamento do streaming na internet. O músico, como sempre, não fala sobre árvores, sempre sobre a floresta. Ao invés de desbancar o Youtube, pede a mobilização de todos para eleger as melhores práticas, discutir se é conveniente manter o privilégio das "elites exploradoras que sempre levaram o barco até agora". Diz que a democracia horizontal, "sem esta baixíssima distribuição de poder e renda", é uma demanda global. "Ou ou planeta faz isto ou vai escafeder-se", conclui.

Gil fala do sucesso da música americana nos Estados Unidos. Para ele, é hora de homenagear João Gilberto, "que concentrou voz e violão", Carlos Lyra, Ronaldo Boscoli, Roberto Menescal e principalmente Tom Jobim, que ajudaram a criar o que se chama hoje de Latin Jazz. Uma coisa bem diferente dos tempos de Carmen Miranda desfilando com a salada de frutas na cabeça, “uma invenção de Dorival Caymmi, que recomendou esta indumentária para Carmen". Se eles não tivessem existido, diz,  não estaríamos aqui. 

Fala da influência de Bossa Nova, de Jimmy Hendrix (que é de Seattle), de Bob Dylan e até do seu amigo Quincy Jones (também de Seattle), entre outros compositores americanos. Cada vez mais, diz Gil, o mundo já identifica a música brasileira e os diferentes estilos. “A música tem o poder de unir corações e mentes em todos os lugares, é importante que a nossa música seja reconhecida no mundo, é importante que a diversidade seja garantida”.

Já no carro, Gil, já de volta estado contemplativo, admirando o movimento dos barcos no Lake Washington, lembra que há tempos estava deprimido, “envolto em minhas questões”, quando decidiu desistir da música e fazer outras coisas na vida. Para se despedir, escreveu a música Palco (Fogo eterno prá afugentar/O inferno prá outro lugar/Fogo eterno prá consumir/O inferno, fora daqui/Fora daqui) e deixou-a num canto.  Foi quando o grupo A Cor do Som visitou-o e pediu para gravar a música, que estourou nas paradas. “Gosto de todas as músicas que fiz, mas Palco é uma espécie de música talismã para mim - a partir dela, tudo mudou”.


Depois da turnê no Hemisfério Norte, Gil se unirá a Caetano Veloso para celebrar 50 anos de carreira ao lado do amigo. Começará pela Europa, em Julho, até chegando ao Brasil em agosto e setembro. Se o pessoal da imigração continuar humilhando-o na fronteira, não voltará mais aos Estados Unidos.