sexta-feira, 1 de agosto de 2008

TERRÁQUEOS, LUNÁTICOS E MARCIANOS

San Juan Islands – Para muita gente (inclusive eu) a coisa mais interessante que aconteceu na Terra desde Adão e Eva foi a chegada do homem à Lua, numa fria noite de julho de 1969. Até hoje nada foi mais extraordinário que o astronauta Neil Armstrong (“um pequeno passo para mim, um grande passo para a Humanidade”) descer titubeante a escada do módulo da Apolo 11, pisar na Lua e fincar a bandeira dos Estados Unidos antes dos soviéticos, naquela época chamada de carrascos de Moscou, agentes da mal, devoradores de criancinhas e assim era o mundo de então.
A Nasa (pronuncia-se naasssa), a agência espacial norte-americana que mandou os astronautas para a Lua sem a ajuda de nenhum computador (mesmo porque naquela época eles não existiam), comemorou na semana passada 50 anos. Ela nasceu pelas mãos do republicado Dwight Eisenhower, que quase morreu de inveja (como todos os americanos) do soviético Yuri Gagarin tornar-se o primeiro homem a dar uma volta pela órbita da Terra, mas foi John F. Kennedy quem lançou a corrida espacial: “queremos descer na Lua até o final da década”, disse ele num discurso. O que pouca gente sabe é que, depois deste discurso, os Estados Unidos dedicaram quase um 1% do seu Produto Interno Bruto à Nasa.
A agência, que já fez mais de 150 missões tripuladas até hoje, recebe anualmente cerca de US$ 17 bilhões para brincar de ir à Lua novamente, manipular jipinhos no solo de Marte ou visitar aquela estação espacial lá em cima que ninguém sabe porque existe. O problema é que, agora, ela sofre de dois males: não há uma meta específica em torno da qual todo mundo se une (ir à Marte para que?), ao mesmo tempo em que dezenas de milionários ou pagam absurdos para uma vaga de turista nas viagens espaciais, ou jogam milhões numa corrida espacial privada. Tome-se os exemplos de Jeff Bezos, o dono da Amazon, ou de Richard Branson, da Virgin. Ambos, nascidos vendo Super Homem e os Jetsons na TV, estão brigando para ver quem chega primeiro lá em cima, e por um preço razoável, capaz de atrair milhares de consumidores.
A Nasa já errou muito: os astronautas da Apolo 1 morreram carbonizados num teste, a Apolo 13 não conseguiu aterrissar na Lua e os ônibus espaciais Columbia e Challenger explodiram lá em cima. Por gastarem bilhões de dólares dos contribuintes (só o programa dos ônibus espaciais já custou mais de US$ 100 bilhões) e por atraírem a atenção de todo o mundo, qualquer desastre com a Nasa parece ser de grandes proporções, que significam protestos, debates e principalmente redução de verba para os programas. Quando a poeira abaixa, voltam os planos, as verbas e as vitórias, como por exemplo, as recentes e surpreendentes informações sobre o solo de Marte, que tem água e, conseqüentemente, vida.
Entre a Nasa de John F. Kennedy e a Nasa de George W. Bush (ou de Obama, ou de Mccain) existem muito mais de 50 anos. O mundo de hoje não é tão vidrado no espaço – tanto é que a missão há alguns anos mudou para “entender e proteger o planeta em que vivemos” . Parece que o mundo hoje prefere (ou precisa) arrumar a casa, diminuir o aquecimento global, proteger a natureza e ter uma vida saudável. Hoje também não existem soviéticos para competir com os americanos. Sem competidores, não é competição. O espírito competitivo é tudo eles. Quando Armstrong, Collins (o segundo homem a pisar na Lua) e Aldrin voltaram à Terra, ficaram alguns dias de quarentena dentro de uma bolha especial (tinha-se receio de que eles trouxessem alguma praga maldita lá de cima). Foram recebidos como heróis, mas quando Aldrin foi abraçar sua família, seu pai lhe perguntou:
- Por que você não foi o primeiro a pisar na Lua?

NOSSO DESTINO É CRIAR

San Francisco – Não é café, nem petróleo ou avião. Enfim, depois de tortuosos 508 anos de vida, descobrimos nossa vocação: é criar, formar conceitos, conectar pontos, inventar, abrir as portas do inusitado. Os brasileiros, que desde 2006 investem mais no mundo que o mundo no Brasil (US$ 152 bilhões em ativos, segundo a KPMG), estão em vias de dominar a criação nos Estados Unidos, desde publicitários, designers, músicos, gente da moda e até empresários. Agora, temos um produto, a criatividade, um projeto, espalhar nossa criação nos quatro cantos do mundo, e um objetivo para esta revolução criativa: gerar dividendos para nós.
Mergulhados num prato de frango ao curry, regado a água de coco, num barulhento restaurante asiático aqui, na capital da inovação, PJ Pereira (sócio de Nizan Guanaes nos Estados Unidos), Bruno Ewald, cineasta e sobrinho do Rubens, e eu vamos resolvendo os problemas nacionais e citando nomes que, hoje em dia, são mais falados nos Estados Unidos que no Brasil: Ícaro Dória, da Saatchi & Saatchi New York; Ricardo Figueira, da Isobar; Fernanda Romano, da JWT. O próprio PJ já é um dos criativos mais festejados aqui em San Francisco, através da Pereira & O’Dell.
Por sermos uma festejada mescla de branco-indio-negro, uma Itália dos trópicos rebatizada a cada ano como o país do futuro, aprendemos a criar do nada, sem organização ou planejamento, em cima da hora ou, como celebramos, por acaso. Veja este povo da Imbev, o Carlos Brito comprando a Anheuser-Bush na maior transação da história dos Estados Unidos. Ou Carlos Ghosn, colocando a Nissan/Renault nos trilhos e reinventando a indústria automobilística. Rogê Agnelli, o ser mais competitivo que o Brasil já produziu, dia desses faz a Vale dona de todas as minerações aqui, repetindo o sucesso de Alain Belda, da Alcoa.
Sem ufanismo, é tudo gente que fala português, bebe caipirinha, já chorou na novela das oito e cresceu jogando futebol. Ou também gente que cansou de falar mal do Brasil ou que não entende porque a nossa auto estima já nasceu lá embaixo. Daí este Manifesto Bossa Nova pela Criatividade Brasileira, um documento nascido pelas mãos do baiano Nizan Guanaes (que como todo bom baiano não nasceu, estreou), e que deu o que falar durante um recente congresso de propaganda no Brasil.
O conceito de criatividade, como se sabe, não é novo, mas a conscientização de seu poder ecônomico é. Ela desafia formas, estruturas, hierarquias, parece ser espontânea, mas na maioria das vezes surge da fórmula 90% transpiração e 10% inspiração. Esta indústria – que pode ser encontrada em setores tão distintos como softwares ou artesanato, costura ou vídeos, televisão ou móveis –, e cujo valor de exportação hoje é calculado em mais de US$ 445,2 bilhões em todo o mundo, segundo o consultor Supachai Panitchpakdi, é a nossa redenção, aquilo que fazemos de melhor, a arma que precisamos utilizar intensamente para não naufragar num mundo dominado pelas formigas chinesas, pelos PHDs em série da Índia ou pelos petrodólares da Rússia.
Falta agora bater no peito, reconhecer nosso potencial, trabalhar duro e correr para o abraço. Pouca gente consegue ver a relação entre criatividade e desenvolvimento político, social e econômico. Criatividade é o amálgama que pode nos unir para sobreviver num mundo globalizado, instantaneamente mutável, mudando (para melhor) o nosso destino. A melhor forma de prever o futuro, como se sabe, é criá-lo.

ESTÃO FALANDO MAL DE VOCÊ

San Francisco – Uma das primeiras lições que aprendemos no jornalismo é jamais falar ou escrever através da mídia aquilo que você, como cavalheiro, não faria pessoalmente. O mesmo pode ser aplicado aos bilhões de internautas que, freneticamente, não medem palavras ou sentimentos quando se dirigem a outras pessoas, especialmente crianças. Esta lei, apesar de não escrita, nada mais é que bom senso (ou senso comum) para quem vive em sociedade.
Só que a turma da internet, armada de emails, mensagens instantâneas, sites de relacionamento etc. não está nem aí para estes limites e está mandando ver. O resultado é que hoje, nos Estados Unidos, 42% das crianças e adolescentes já foram ou são vítimas de um engraçadinho (ou, na maioria das vezes, engraçadinhas) que escrevem coisas horríveis para amigos, amigos dos amigos, namorados, casos e, o que era de se esperar, inimigos.
Pode parecer coisa menor, “coisa de criança” , mas tem gente nem experimentou a puberdade e já se matou depois de receber emails ofensivos ou sofrer campanhas on line maliciosas, desde críticas à quantidade de espinhas no rosto, o tamanho do nariz, uma roupa considerada ridícula, intolerância racial e até rejeições amorosas. Pais, educadores e gente preocupada com o assunto vêm criando sites educacionais, como o www.cyberbullyng.com, para abrigar denúncias e fazer algo sobre o assunto. Até um filme, Adina's Deck, já foi feito sobre a questão.
Quem tem filho sabe que crianças (e adolescentes) falam e escrevem coisas horríveis, não porque são maus ou futuros criminosos. Mas, por não terem sofrido as agruras da vida, não conseguem avaliar os resultados de suas ações. Com o tempo, e depois de levar umas pancadas, pensam duas vezes antes de falar o que vem à cabeça. Palavras são poderosas. Elas encantam ou destroem, na maioria das vezes muito mais pela forma do que pelo conteúdo.
Defronte à tela de um lap top ou um celular, no entanto, fica mais fácil soltar as rédeas das emoções e destruir pessoas. Sem a presença física, ou mesmo travestido de outra pessoa, a tela do computador funciona como um escudo, um objeto eletrônico que te impede de levar um soco ou ouvir o que não quer. É um veículo ideal para gente ruim, que gasta tempo e palavras para o mal. Na enquete americana, 58% das crianças e adolescentes entrevistados não revelaram aos seus pais, ou a qualquer adulto, que foram ou estão sendo vítimas de ameaças, campanhas difamatórias, fofocas etc.
O que fazer? Segundo o site www.stopbullyingnow.com, coloque o computador que os filhos utilizam em lugares freqüentados pelos pais. O segundo passo é conversar com os filhos sobre o assunto, e encorajá-los a revelar quando há alguma ameaça. É importante frisar que jamais a vítima deve responder às ameaças on line, e sim procurar amparo nos responsáveis ou, em última instancia, na Justiça. É recomendável manter as provas deste crime, jamais apagando os emails, mensagens de texto ou fotos e ilustrações enviadas. E, por último, instalar softwares de controles nos computadores dos filhos, muitos deles já incorporados aos navegadores quando são instalados.
Não só nos Estados Unidos, como em todos os países, o cyberbullying é uma atividade repugnante e inaceitável, e que merece a intromissão de pais ou responsáveis mesmo à custa da perda de parte da privacidade dos filhos. Deste Adão e Eva, nunca tivemos uma ferramenta como a internet para colaborarmos em escala global rumo à paz e a felicidade. Pena que tem gente no mundo que acha justamente o contrário.

“ALÔ? PRECISO DA SUA AJUDA PARA SALVAR O MUNDO”

Seattle – Quando tomava seu último drinque num restaurante de Nova York na noite em que comemorou seu 52º aniversário, dia 13 de março deste ano, Jamie Dimon, CEO e chairman do JP Morgan Chase, recebeu um chamado dos diretores do Bear Stearns, a venerável casa bancária nova-iorquina, àquela altura vítima de uma corrida sem precedentes. “Precisamos de US$ 30 bilhões para fechar o caixa esta noite”, imploraram. Dimon deu dois goles, pensou alguns segundos já ia respondendo um sonoro não quando avaliou que ali estava o início de uma catástrofe de proporções globais. A festa de aniversário não só tinha acabado para ele. Naquela noite e nas 72 horas seguintes, em frenéticas negociações, Dimon mobilizou o presidente do Banco Central, o secretário do Tesouro e toda uma cadeia de milhares de contadores, advogados, consultores, e gerentes ao redor do mundo para salvar o Bear. Acabou comprando o banco por uma ninharia (“uma coisa você é comprar uma casa, a outra é comprar uma casa em chamas”, disse ele) por dez dólares a ação, com o aval do BC americano.
Dimon é hoje a maior sensação do sistema financeiro dos Estados Unidos. Bem nascido, formado por Harvard, cara de menino, obcecado por cortar custos, desde bônus até contas de celulares, deu semana passada uma entrevista de quase duas horas para a TV pública norte-americana, a PBS, durante o Festival de Novas Idéias, em Aspen, Colorado. Ali, diante do jornalista Charlie Rose, descreveu com o humor os delicados dias em que, segundo ele, o mundo foi salvo de uma hecatombe financeira. “Naquela noite, avaliamos que havia um risco de 30% de haver uma quebra sucessiva de bancos e outras instituições financeiras – mesmo assim, assumir este risco seria uma grande falta de responsabilidade - tudo poderia acontecer”. Dimon, que já foi protegido e braço direito de Sandy Weill, o obscuro banqueiro que através de fusões e aquisições chegou a chairman do então maior conglomerado financeiro mundial, o Citicorp, sendo depois demitido por seu protetor, diz que Wall Street não pode ser responsabilizada pela crise econômica americana. “Wall Street somos todos nós”, disse ele. Qualquer cidadão americano (ou de muitos países) possui investimentos ou aposentadorias negociadas lá, explica. “No entanto, há muita alavancagem, liquidez e ambições desmedidas, mas Wall Street apenas reflete o que se passa na economia”.
Dimon, casado e pai de três filhas, já poderia estar descansando em cima dos seus quase um bilhão de dólares, principalmente em ações do JPMorgan, mas parece um gênio jovial quando fala do sistema financeiro, dos Estados Unidos e dos problemas a serem enfrentados por Barack Obama ou John Mccain, candidatos dos democratas e dos republicanos. O principal deles, diz Dimon, é o que ele considera uma “esclerose” das instituições norte-americanas. Para o chairman do JPMorgan, os Estados Unidos perderam a capacidade de reagir e resolver seus problemas, habilidade que, há quase um século, tem levado o país a ser a maior potência do mundo. Por exemplo, “desde 1974 sabíamos da crise de petróleo, e mesmo fizemos muito pouco para solucioná-la”. Mais ainda, os Estados Unidos não têm um plano para resolver o decadente sistema educacional e os estratosféricos custos da saúde, reclama. “Apesar de democrata, tenho muitos amigos republicanos e milionários que pensam que eles fizeram este país – penso o contrário: eles são beneficiários das oportunidades que os Estados Unidos lhes ofereceram e agora está na hora deles ajudarem o país a resolver estas importantes questões”.

ABAIXO OS POLÍTICOS (E VIVA A POLÍTICA)

San Francisco, Califórnia – Quando no poder, ou próximos a ele, os políticos roubam (ou deixam roubar), favorecem interesses (mesmo os bons) ou simplesmente embolsam gordos salários e não fazem nada. A culpa não é deles. Como os gregos descobriram ao inventar a democracia, é próprio do ser humano querer agradar a todos, mentir ou acomodar-se às benesses da Corte. E, mais ainda, fazer de tudo para não perder esta boquinha.
Mas a possibilidade de extirpar os políticos – e preservar a política – está chegando. Depois de uma semana fazendo um documentário para a TV brasileira sobre a revolução da colaboração aqui no Vale do Silício, fica fácil entender porque a era do intermediário – políticos, vendedores de seguros, consultores, advogados e até jornalistas – está chegando ao fim.
O fenômeno da internet – e da colaboração – democratiza a informação e, conseqüentemente, o poder. Mais do que a TV, a Internet hoje é, por exemplo, o banco dos réus dos representantes que dizem nos representar. Os internautas, libertários por natureza e gregários no cotidiano, quase elegeram o obstetra Ron Paul (“fim do imposto de renda e das forças armadas”) candidato republicano à presidência dos Estados Unidos.
Agora, numa virada surpreendente, podem destruir a candidatura de Barack Obama, o democrata escolhido pela blogosfera para a Casa Branca. O afro-asiático-americano está indo para o centro para agradar outros eleitores, com posições direitistas sobre a pena de morte para estupradores de crianças, o porte de armas e aí por diante.
A mudança está enfurecendo o mundo virtual. Ao mesmo tempo em que Obama vira a folha, 12 mil internautas criaram um grupo on line no site do candidato, exigindo que ele mantenha-se fiel aos princípios de campanha. “Quando um candidato decide se mover para o centro, ele deveria ficar longe de nós”, disse Mike Stark, estudante de direito da Universidade de Virgínia.
Ou seja, a opinião do eleitor que está detrás da tela do computador agora não é apenas importante, mas pode definir o futuro dos políticos – e da política. O ambiente virtual tem todas as condições não só de deliberar sobre qualquer assunto que rege nossas vidas, mas também acabar com a intermediação, que hoje sobrevive porque os intermediários sempre vão arranjar um jeito de sobreviver.
Calcula-se que hoje existam 1,2 bilhão de internautas no mundo, que de uma forma muito mais fácil, segura e instantânea podem votar on line sobre qualquer tema, dispensando exaustivos processos de campanha, financiamentos, lobby, corrupção... Enfim, toda esta embromação que muita gente já está cansada de acompanhar no nosso dia-a-dia.
Tome-se o exemplo de George W. Bush. Um homem só, eleito pelo voto dos delegados, e não pelo voto do povo, fez um estrago de proporções maremóticas em oito anos de governo. Ou mesmo Lula, no Brasil, que está dando certo porque, incompetente e complacente com a corja que tomou o poder, não conseguiu fazer o estrago de proporções maremóticas pelo qual foi eleito.
Todo poder ao povo, dizia John Lennon. Fosse vivo, hoje estaria cantando: todo poder a você. Agora, a liberdade, a paz e a democracia estão na frente de qualquer tela de computador.

CONVERSA ANTES DA DECOLAGEM

Seattle - Não sei se tenho cara de confessionário, mas basta um ser humano sentar-se ao meu lado para a história começar. A última foi num banco do aeroporto de Atlanta, o maior do mundo, quando esperava a conexão para Seattle. Uma mulher na casa dos 50 anos, vestida de preto, chapéu de caubói e sapatos de lã, me disse que, num intervalo de seis meses, teve de mandar a filha autista para um hospício em Utah, perdeu 65 quilos, separou-se do marido depois que ele revelou que era gay e, como se não bastasse, começou a perder a força nas pernas, a ponto de não poder mais andar sem a ajuda de um andador.

Antes que tentasse balbuciar algum comentário ("escutar é um ato de amor", diz o ditado), emendou: “adoro mudanças (e como, pensei eu), mas o fato de não poder mais andar está surpreendendo não só a mim como aos médicos”. "Fiz testes de sangue, ressonância, cutucaram minha coluna e não descobriram nada". Mórmon (“da sétima geração”), filha de professores que rodavam o mundo ensinando inglês, a mulher não citou Deus nem o destino para explicar os mistérios que a estavam rondando. Pele pálida, cabelos desarranjados, olhos reluzentes, estava encantada, isto sim, com mistérios da medicina.

Antes da chamada para o embarque, ela retirou da bolsa um laptop e continuou falando. "Ganho a vida escrevendo (é redatora de publicidade) e ensinando os outros a escrever - meu último livro, não sei se você leu, chama-se "Como Escrever num Mundo Onde Ninguém Lê". Balancei a cabeça e coloquei a mão no queixo em sinal de concordância. "É um livro fácil de se ler porque é extremamente pequeno (imagino), tem poucas páginas (não diga) e letras extremamente grandes (melhor assim)".

Continuei em silêncio quando revelou que, apesar de norte-americana, era nascida no Irã, criada na Rússia, crescida no Afeganistão e, ainda adolescente, mudou-se para a Birmânia (ou outro país distante) junto com os pais e seis irmãos. Já em Seattle, apaixonou-se com um professor que dava aulas em Atlanta, para onde se mudou. Agora, estava voltando para Seattle, pois fora chamada para trabalhar num projeto legal.

Em Atlanta, teve dois filhos, o mais velho faixa preta de caratê, especialista em explosivos e que trabalha como double de cinema. A outra filha foi diagnosticada aos três meses de idade com autismo. "Não há nenhuma relação entre autismo e vacinas, como se diz por aí, tampouco que o autismo esteja crescendo como uma epidemia", diz ela. "O que está crescendo é a percepção entre as pessoas sobre a doença que ataca as ligações entre os neurônios do cérebro - entre dois e 3% da população do mundo é autista", explica.

Antes da decolagem, vi de longe a mulher ser acomodada no primeiro assento do avião. Num espaço de seis meses a vida tinha lhe dado diferentes e estupendas pancadas. O marido, a filha, o trabalho, a perda de 65 quilos e, agora as pernas. Durante o nosso encontro, e na única vez que falei, ousei perguntar-lhe se o problema nas pernas não seria uma somatizaçao de tudo que ela está passando. "Não existe relação", argumentou com voz forte e um pouco brava. "Amo meus filhos, adoro meu ex-marido, apesar de separados, adoro viver e sou extremamente feliz".

*Dirige a Cia. da Informação em Seattle, Estados Unidos (pedro@theinformationcompany.net)