sábado, 6 de janeiro de 2024

PAPAI ERA O HEROI LA DE CASA





Afundou submarinos alemães, foi cestinha no basquete, namorou uma tal de Lúcia e sempre foi o favorito da vovó Olavina. Nunca o vi olhando para o infinito ou com os olhos a esmo. O jornal, convenientemente, o protegia da realidade da casa, dos filhos, das empregadas, da faxina e de tudo aquilo que não era com ele. Leu tantos livros que, na falta do que ler, leu-os novamente. Nas poucas vezes que entrou na cozinha, parecia um objeto não identificado. Me ensinou a não gostar de qualquer filme que tenha criança ou cachorro, nesta ordem. Me fez assistir a todos os filmes de John Wayne. E de Jerry Lewis também. Me ensinou a eleger Manuel Bandeira o maior poeta brasileiro, muito à frente de Carlos Drummond. Beethoven, ao invés de Mozart. Carlos Lacerda, ao invés de Juscelino. Fluminense, ao invés de qualquer time. Me ensinou também a andar de bicicleta, a marcar gols ("gol do Pelé" foram as minhas primeiras palavras), a ser empresário e não empregado, a tentar a vida na Fazenda mesmo sendo do asfalto, a ter idéias fixas, a pensar num Brasil melhor.

Apesar das aparências, era um homem um pouco indecifrável, formal, complexo, extremamente sensível, mesmo que não se usasse ser sensível à sua época. Advogado, segundo se fala um dos melhores que já existiu, ajudava a todo mundo. Não com o espírito de benemerência, mas porque era bom mesmo, um coração afetuoso que todo mundo apreciava, e que acabou, repentinamente, num espaço de menos de um dia, levando-o desta vida aos 89 anos. 

No seu enterro, que cheguei quase no final, vi um homem forte, cara boa, feliz, leve (mas que bonito…) sorriso, dentro do caixão. Sua felicidade, sinal de realização, era tão forte que o enterro transformou-se numa confraternização de quem não se via há muito tempo. Estávamos resignados com o acontecido. Conversamos, agradecemos, choramos e...bebemos. Era chegada a hora. 

Papai chorou quando a vovó morreu, quando o médico lhe falou que minha irmã Paula morreria de leucemia em poucas horas, quando me viu chegar no enterro do vovô Homero, seu pai, abraçando-me como se, abraçando-me, garantisse a continuação da espécie. Fora estas ocasiões, nunca o vi chorar, pois, afinal, homem não chora. Tivemos longas e proveitosas conversas, especialmente quando dirigia o carro para a única pessoa que conheço que abriu mão de dirigir. Achava enfadonho. Numa das viagens, disse que amava tanto a mamãe que casaria-se com ela em qualquer circunstância, em qualquer religião, em qualquer país. Mamãe sempre foi a rainha do reino dele, a musa inspiradora, a católica fervorosa que ele aprendeu a respeitar como ateu ("vocês jamais podem duvidar da fé da sua mãe", nos advertia). Era o provedor, o caixa, a referência financeira e, assim, soube conjugar poder e dinheiro em proveito próprio e dos outros.

Me admirava por ser diferente dele, mais alto, mais expansivo, mais atirado, sem saber que eu estava, como sempre estive, meio perdido. Me chamava de Pedro Augusto. Tinha na Paula a antítese do mundo, na Lúcia o reflexo da sua instigante e culta mente, no Paulo a extensão do noticiário, na Tia Creusa a sua ONG, e no Pepê a filha que perdeu covardemente. Era presidente do fã clube de todos nós. Nunca me criticou.  Só quando saí de casa para morar sozinho. Num dia também perguntou quando eu ia me casar. Também nunca me elogiou. Só quando tornei-me jornalista e, depois, consul, mesmo que honorário, do Brasil aqui nos Estados Unidos. Quando minhas filhas nasceram, sua primeira pergunta: são normais? Minhas filhas Georgia e Clara não conviveram muito com ele, mas sabiam de sua importância, do trabalho na Fundação, no escritório, na Fazenda. Frieda, minha mulher, até hoje se sente sua alma gêmea, nativa de Peixes. 

Papai sempre morou na mesma casa quase 80 anos mais ou menos. Sempre teve o mesmo endereço, o mesmo telefone, a mesma recusa em ter a Carteira de Identidade, já que era veterano de Segunda Guerra e a foto com o uniforme na sua Carteira de Militar da Reserva abria as portas das autoridades. Nunca entrou numa loja. Nunca comprou roupa, comida, eletro eletronicos etc. Aliás, tirando livros, nunca o vi comprando nada. Não porque não tinha dinheiro. Consumir não era com ele. Estava interessado em outras coisas, como política. Carlos Lacerda, sua grande paixão, o fez comprar os direitos da biblioteca, publicar seus livros e ser o maior especialista em lacerdismo, tanto no Céu como na terra.  Ao final da vida, excitou-se com a sugestão da Fundamar publicar livros de reconhecidos autores de direita, não somente porque somos de direita, coisa que no Brasil não existe, mas pelo simples prazer de cutucar a esquerda.

A vida de papai não era muita física, de carne e osso. Era um homem que se movia entre as idéias, sempre as mesmas, cada uma adaptada ao tempo em que vivíamos, às circunstâncias do momento. A história é cíclica, vinho bom é muito, a esquerda é burra, o melhor lugar é a casa da gente, exercício físico faz mal, graxa na mão se limpa com terra, coerência é coisa de imbecil, quem faz, erra, que não faz, já errou, viajar só por alguma razão que não seja apenas viajar, lugar de chorar é na cama …..e por aí vai. Jamais foi um radical, entrenhava-se entre direita e esquerda com destreza, e no final da vida chegou até a admirar os amigos comunistas, não pelas idéias, mas pelo debate. Debateu tanto xingando o Juscelino que o Frei Rosário ameaçou-lhe com uma faca (na verdade, estava descascando uma laranja e se exaltou). Embora caseiro, era um homem dado a desastres fora de casa. Quase morreu numa trombada na estrada quando ainda era noivo da mamãe. Perdeu vários dentes. Bateu o carro diversas vezes na estrada para a Fazenda, em acidentes graves, do quais fiquei sabendo dias ou meses depois. Foi atropelado por tudo, até bicicleta. Foi notícia no Jornal Nacional quando um enxame de abelhas quase o matou. Quando fui socorrê-lo de avião, não acreditei que iria sobreviver.

Era também um homem suave, excelente ouvinte (mais por amar a informação, qualquer informação), que não levantava a voz nem brandia as mãos. Quando indagado, falava a verdade com um extremo cuidado, em capítulos, sempre receando que o interlocutor explodisse em rancor ou desesperança. Tinha, como me disse, tédio a muitas controvérsias, especialmente familiares.  Não acreditava muito na palavra, mas sim no exemplo da ação. Foi benevolente, corajoso, futurista em todos o momentos da sua vida. Era um homem de bem. Era o meu pai.


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